sexta-feira, 3 de junho de 2005

orkut real

Meu garoto me escreveu no último final de semana. Depois de longos dias, recebi notícias através do correio eletrônico. As coisas parecem que vão bem, com excessão da comida, que ele diz ser horrível. Infelizmente não posso falar o mesmo. A comida da minha casa é ótima, mas se eu pudesse arrancá-lo de mim, abrir os olhos e passar a viver como se aquele domingo não tivesse existido, tudo seria melhor. Na minha garganta ainda mora uma bola de sinuca. Sufoca. Machuca. "Me sinto especial e fico feliz". Eu o faço feliz. Eu faço um monte de gente feliz. Faço o ego de um monte de gente alçar vôos enormes. Daí paro, olho para os meus botões e pergunto: E a mim? Quem tenta fazer o mesmo comigo? As carinhas e corações do Orkut não ajudam muito. Na realidade, quem melhora os meus sorrisos?

Não foi preciso muito. Sem a menor cautela, pontos de interrogação foram invadindo as paredes e o teto do meu quarto. Milhares deles. Pontos azuis, vermelhos, verdes, todas as cores. Perguntas e mais perguntas. O ambiente se tornou insuportável. Pensei em me esconder debaixo da cama, mas lembrei-me que já fazia um tempo que tinha a trocado por um terrível sofá-cama. Eu precisava dar o fora dali. Correndo.

Fui me esconder. Fui para o Centro Velho. Quando o desespero bate, quando os primeiros sintomas da Doença de Gente começam a aparecer, o melhor remédio a ser tomado é o Largo São Francisco, ônibus que me deixa em frente a Catedral da Sé. Em menos de vinte minutos, ao saltar do veículo, lá estava ela, linda, enorme, gótica, lotada de pessoas de diveros tipos e lugares. Apesar do fascínio, não tive coragem de entrar. Alguma coisa me afasta de igrejas.

Já passava das cinco da tarde, não havia nenhum lugar interessante que não estivesse fechado. Caminhei mais um pouco e dei de cara com o Conjunto Cultural da Caixa Econômica. Cultura. Arte. Conhecia tão pouco aquele espaço. Estivera ali semanas antes, mas fiquei pouco tempo. Resolvi entrar, uma exposição que eu queria ver continuava a mostra. Peguei alguns folders na entrada e caminhei em direção ao trabalho da Marina Inoue. Labirinto Visceral. Um embrulho no estômago. Uma sensação incômoda. Agonia. Aflição. Aquele vermelho sangue cutucou algo em mim. O que tudo aquilo significava? Entranhas. Sangue. Banheiro. Espelho.

Subi as escadas, outro trabalho, o do artista Douglas Barzon. A Arte da Empresa. Como leiga, posso dizer que vi vários desenhos bem rabiscados. Por algum motivo, eles me remeteram à infância, os trabalhos escolares, feitos com nanquim. Olhei um por um encantada, examinando cada contorno, cada detalhe. O último me chamou mais a atenção. Permaneci longos segundos observando, lendo as anotações do artista, os comentários feitos ao lado de cada desenho. Mesmo sem entender, eu estava fascinada. Fascinada e invisível. Ninguém ali estava me enxergando. Minto, um casal pediu licença para passar na minha frente enquanto eu observava o desenho. Eu sorri. Não retribuíram meu sorriso. Continuei olhando. Silêncio. Arte. Arte. Silêncio. Eu queria ser sugada por aquele lugar. Eu poderia permanecer olhando aquela gravura para sempre. Silêncio. Vazio.

- Artista Plástica?

De volta ao mundo real. O mundo onde há vozes, pessoas, perguntas e dor. Não era comigo, obviamente. Ninguém nunca me vê, ninguém nunca fala comigo, ninguém nunca quer saber nada sobre mim. Não toco ninguém. Artista Plástica. Ha ha, com aqueles tênis imundos jamais alguém perguntaria se eu era uma, nossa, artista plástica. Continuei olhando a gravura, oscilando o corpo ora pra frente, ora pra trás. Não olhei quem havia feito a pergunta, mas fiquei curiosa por não ter escutado qualquer resposta. Silêncio. Vazio.

- Artista Plástica?

Novamente. Era um homem quem insistia na pergunta. Não resisti e olhei para o lado. Não era um homem. Quero dizer, não exatamente. Era um rapaz. O rapaz que, enquanto eu pegava os folders, falava que na noite anterior tinha visto o Bozo na televisão. Ele trabalhava lá e queria saber se eu era artista plástica. Por que ele queria saber? Eu tinha cara de artista plástica? Eu estava vestida como uma artista plástica? Eu olho quadros como artista plástica? Ora, por que a pergunta?

Então começamos a conversar. E ele ficou sabendo que eu não era artista plástica, mas sim, estudante de jornalismo, assim como ele. E que eu também nunca tinha trabalhado na área nem publicado nenhum texto, diferente dele, que já tinha escrito para a Folha de São Paulo, mesmo sem receber nenhum tostão. Uma conversa rápida, curta e agradável.

O desconhecido me apresentou a última exposição, Trem Para o Centro, do Manoel Paes Neto. Foi me explicando cada quadro, contado a história de cada um. Outros frequentadores se aproximaram para ouvir sua monitoria. Como sou egoísta, não gostei e fiquei me corroendo por dentro. Depois de explicar a última obra, agradeci e caminhei em direção à saída. Silêncio. Vazio.

- Seu nome mesmo?

Dessa vez eu sabia que era comigo.

- Marina.

Ele queria trocar e-mails comigo. Achei fenomenal. Sim, porque eu havia passado a semana inteira pensando sobre isso. Tenho conhecido muita gente por causa do Orkut. Diversas pessoas entrando na minha vida por causa dessa ferramenta. O meu garoto, por exemplo. Por lá é fácil. Muito fácil. Clicamos na foto e lemos o profile. Se gostarmos, adicionamos a pessoa na nossa lista de amigos e ela então passa a fazer parte da nossa vida. Mas e no dia-a-dia? Por que casos assim não acontecem sempre? Por que a gente não se aproxima de quem achamos interessante ou parecido conosco? Por que esse bloqueio tão grande? Por que tanto receio? Por que tanta antipatia? Os pontos de interrogação das paredes do meu quarto, sem a menor vergonha na cara, começaram a invadir a Caixa Econômica. Corri de lá antes que fosse tarde, desejando apenas que a amizade com aquele desconhecido crescesse, afinal, ele tinha enxergado meu profile.